segunda-feira, 29 de outubro de 2012

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O tempo e os retornos

O tempo entre retornos é o tempo das mudanças comprimidas, do choque acumulado, do passado que deixa de ser eterno em um só impacto.



Morte das casas de Ouro Preto

(Carlos Drummond de Andrade)

Sobre o tempo, sobre a taipa,
a chuva escorre. As paredes
que viram morrer os homens,
que viram fugir o ouro,
que viram finar-se o reino,
que viram, reviram, viram,
já não vêem. Também morrem.

Assim plantadas no outeiro,
menos rudes que orgulhosas
na sua pobreza branca,
azul e rosa e zarcão,
ai, pareciam eternas!
Não eram. E cai a chuva
sobre rótula e portão.

Vai-se a rótula crivando
como a renda consumida
de um vestido funerário.
E ruindo se vai a porta.
Só a chuva monorrítmica
sobre a noite, sobre a história
goteja. Morrem as casas.

Morrem, severas. É tempo
de fatigar-se a matéria
por muito servir ao homem,
e de o barro dissolver-se.
Nem parecia, na serra,
que as coisas sempre cambiam
de si, em si. Hoje vão-se.

O chão começa a chamar
as formas estruturadas
faz tanto tempo. Convoca-as
a serem terra outra vez.
Que se incorporem as árvores
hoje vigas! Volte o pó
a ser pó pelas estradas!

A chuva desce, às canadas.
Como chove, como pinga
no país das remembranças!
Como bate, como fere,
como traspassa a medula,
como punge, como lanha
o fino dardo da chuva
mineira, sobre as colinas!
Minhas casas fustigadas,
minhas paredes zurzidas,
minhas esteiras de forro,
meus cachorros de beiral,
meus paços de telha-vã
estão úmidos e humildes.

Lá vão, enxurrada abaixo
as velhas casas honradas
em que se amou e pariu,
em que se guardou moeda
e no frio se bebeu.
Vão no vento, na caliça,
no morcego, vão na geada,

enquanto se espalham outras
em polvorentas partículas,
sem as vermos fenecer.
Ai, como morrem as casas!
Como se deixam morrer!
E descascadas e secas,
ei-las sumindo-se no ar.

Sobre a cidade concentro
o olhar experimentado,
esse agudo olhar afiado
de quem é douto no assunto.
(Quantos perdi me ensinaram.)
Vejo a coisa pegajosa,
vai circunvoando na calma.

Não basta ver morte de homem
para conhecê-la bem.
Mil outras brotam em nós,
à nossa roda, no chão.
A morte baixou dos ermos,
gavião molhado. Seu bico
vai lavrando o paredão

e dissolvendo a cidade.
Sobre a ponte, sobre a pedra,
sobre a cambraia de Nize,
uma colcha de neblina
(já não é a chuva forte)
me conta por que mistério
o amor se banha na morte.

(em Claro Enigma)

(A morte da Casa Grande, Fazenda São Manuel, foto de J. C. Brandão, 2010)

(Vista da porteira, Fazenda São Manuel, foto de J. C. Brandão, 2010)

(Fim do trem da Vale, Fazenda São Manuel, foto de J. C. Brandão, 2010)

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Olhar pra frente

Na ressaca destas eleições melancólicas (Lacerda em BH, Serra em SP, Paes no Rio, ACM Neto em Salvador), minha reflexão:

O PT cumpriu seu papel histórico e foi a grande força da redemocratização, reuniu as forças de resistência à ditadura e permitiu que entrassem na era democrática pela via institucional e pacífica, evoluiu como partido de agenda progressista, destacou-se como partido de identidade ideológica, formou gerações de gestores públicos (o verdadeiro “partido de quadros” no país), experimentou com a democracia participativa e criou mecanismos deliberativos que hoje são referência internacional, fortaleceu nosso regime democrático através da primeira transição estável à esquerda no nível mais alto do poder, ganhou respeito internacional como esquerda madura e ainda comprometida com a agenda social. Mas comprou o Congresso Nacional com dinheiro público que roubaram. A importância histórica do PT não vai ser apagada pelo banditismo que o partido praticou quando se aproximou e alcançou a presidênc
ia. Mudaram o país e mudaram pra melhor. Mas como força progressista para o amadurecimento político do país, como motor para a evolução da nação se exauriu. Nossa sociedade sim evoluiu muito e pode ser crítica de um movimento político degenerado, sem cair na hipocrisia de uma oposição tão ou mais bandida, ou no simples preconceito rasteiro e ignorante de uma classe média historicamente bestializada. É certo que hoje as forças da sociedade organizada não-partidárias são a verdadeira vanguarda política, mas na minha opinião partidos ainda são importantes e o que o país precisa agora é de um novo quadro partidário, um capaz de seguir com o amadurecimento político do país, uma vanguarda partidária que lidere e seja referência na construção da nação. A alternativa é preocupante, um partido de “esquerda” cada vez mais degenerado no poder ou a ocupação do vácuo de poder por nossas tradicionais forças do atraso. Melancólica esta festa da democracia, mas a esperança vence o medo, como disse o jargão da hoje velha guarda.


(Henfil, publicado pelo JB nas eleições de 1986; republicado pelo amigo Prós pras eleições de 2012)